Ele se mudou para o prédio há pouco mais de um ano. Acompanhado de uma cuidadora, o senhor alto e forte ocupa um apartamento no térreo e passa boa parte do dia sentado num banco entre os dois blocos, observando a movimentação dos moradores. Um semblante triste e certa agressividade no olhar denotam traços senis e uma solidão que comove. Se a cabeça não está cem por cento, o corpão forte está longe de se entregar.
O velho que exige cuidados é também o homenzarrão cheio de vontades, cuja força é bem difícil de deter. No bom dia que dou a ele ao sair de casa, há uma dose de carinho e outra de prevenção. Sua presença me traz sentimentos ambíguos, me lembra o tempo e suas ameaças, um Deus-me-livre se mistura à empatia quando deparo com seus olhos tristes.
Driblar a monotonia faz parte do processo
Mas a vida não gosta de monotonia. Há poucos meses, mudou-se para cá uma senhora. De origem francesa, veio morar na companhia da filha, do genro e do neto. Trouxe na bagagem o sorriso largo e o gosto confesso pela vida. Passeia, vai à academia, frequenta a praça e faz amigos.
Nas manhãs e tardes ociosas, passou a ocupar um lugar no banco comprido onde ele se aboleta diariamente, a alegria francesa arriscando um diálogo com o brasileiro abandono que o domina. A paisagem da portaria mudou. Vemos agora um casal a dividir plateia em frente à praça. Troquei o bom dia pelo bonjour. Recebo de volta um sorriso franco (com o perdão do trocadilho), suas mãos pousadas sobre a perna dele. Saio abastecida.
Envelhecer é viver o agora
Minha vizinha francesa tem olhos de criança. Curiosa, sorri para o que vem. Não sei se pensa no tempo, está ocupada demais em viver cada estreia. Convidou a vida para dançar – e a vida aceitou. Envelhecer não precisa ser sinônimo de cansaço e ausência – de nós mesmos, do tempo que vivemos. Pode ser vida, olhos abertos para o instante que não volta. Envelhecer é se apropriar do agora, desse tempo que vale tanto quanto mais escasso se torna.
Não, não se distraia com meus cabelos brancos, eu não sou veterana, sou a criança de sempre. Não conheço a morte, pois nunca morri. Também nunca envelheci antes, é minha primeira vez. Tenho tanto medo quanto esperança. Sou estreante, amadora – a melhor categoria. Amo o que vivi e o que virá, uma lista de primeiras vezes. Qual será a próxima?
Texto originalmente publicado na Revista Vida Simples (Edição 249)
Por Cris Pàz
Mãe, produtora digital, podcaster e palestrante. Lançou seu primeiro livro infantil ‘O Menino que Engoliu o Choro’.